"Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes,..."
assim começa, com uma das mais belas imagens da literatura portuguesa, o romance A Jangada de Pedra, de José Saramago.
não era muito simpático. tantas vezes transparecia uma imagem de altivez e arrogância, mas quem o conheceu contradiz todas essas opiniões, construídas a partir de uma imagem pública.
mas nada disso interessa agora. o Homem morreu e as suas personagens estão finalmente libertas da única voz que as podia verdadeiramente explicar. são livres para crescer ainda mais e impregnar o nosso imaginário.
Joana Carda não será uma dessas personagens e porém, tomou conta da minha imaginação que a transformou numa mulher com poderes, uma feiticeira, matriarca, representante da mulher mais despida de futilidade e mais repleta de natureza. com um risco no chão feito com um pau de negrito, Joana Carda, se não é responsável, é a causa primeira de tudo o que vem depois.
que dizer de Baltasar e de Blimunda - como se descobre, como se revela o nome Blimunda, como se junta duas metades pelo nome, Baltazar, Blimunda e se inventam novos tristão e isolda, romeu e julieta... que dizer do Amor em Saramago? um sentimento que, nos seus livros, é um sentimento aparentemente frugal, despido de sensualidade, de emoção, de intensidade? Não sei interpretar, terei de procurar mais.
mais que de personagens, um escritor de ideias - ideias que reflectem valores e princípios, quer directamente, quer através de imagens e de alegorias, pela positiva e pela negativa.
na sua morte, as homenagens, o ritual da morte dos heróis e dos famosos.
todos queremos um pouco do banquete, uma relíquia...
em paz, com a sua ausência de deus, um exemplo de espiritualidade, de procura...
o seu espírito regressou ao universo, atingiu a plenitude, a permanência univeral.
ficam-nos os livros e a memória. as pessoas existem enquanto permanece a sua memória em nós, a sua voz.
foi mais uma voz que se calou.
para uns um familiar querido, para outros um parente que não gostamos de receber, para outros ainda, alguém que sendo da família, preferimos ignorar porque estamos de relações cortadas. foi uma voz que, quando falava, tinhamos obrigatoriamente que ouvir com atenção. uma voz como já há poucas, neste triste país, onde as vozes que interessam vão sendo substituidas por outras que não merecem a vibração que provocam no ar.
hoje, a clara ferreira alves publicou um texto no expresso que diz muito,... se é que não diz mesmo tudo.
e a propósito de amor - Pilar!
proposta de audição: requiem de maurice duruflé