sexta-feira, 29 de abril de 2011

e-mail V


pensei em ti como um oásis.
que imagem batida, chumbada em nós:
tu o meu oásis, eu o teu.

vou-te secar com a minha sede, até não restar mais gota, veio, humidade.
vou-te cercar, impedir que outros te encontrem, te visitem, bebam de ti.
vou apagar a tua beleza, reduzir-te à areia do deserto que te envolve.
vou fazer isto tudo porque, confesso, quero-te só para mim.

porém, se fizesse isso,
não podia mais beijar a tua frescura ou acariciar o teu espelho;
banhar-me em ti, deixar-me envolver pelo teu abraço, adormecer à tua sombra.
não entendo esta paixão que se afoga, que se queima, que se imola.

se fizesse isso,
matava-te e depois morria

segunda-feira, 4 de abril de 2011

corredor


no sonho eu caminhava pelos corredores da casa, escutando o mínimo ruído, tentando identificar um sinal de vida. as paredes estavam cobertas por papel de parede dum tom verde seco com desenhos, lembrando o papel de parede de algumas casas inglesas. sobre este descansavam ou morriam, lentamente, cópias de quadros antigos, paisagens holandesas intercaladas com madonas renascentistas, acompanhadas da respectiva corte de santos. a iluminação era suficiente, não deixando o corredor cair numa penumbra críptica.

os meus passos eram seguros mas cautelosos. os sonhos podem ser traiçoeiros pelo que deve ser exercida alguma cautela, quando caminhamos por um corredor com demasiados ângulos rectos. nunca sabemos o que esconde uma esquina, uma mudança de direcção.

estaquei junto a uma porta que abri. tratava-se da cozinha e lá dentro, junto a uma das bancadas, a minha avó despejava o resto do puré de batata que sobrara do almoço de aniversário para dentro de uma taça de plástico. quando percebeu que eu estava ali, interrompeu o gesto que estava a fazer com a colher de pau, sorriu e começou a trautear uma melodia da beira alta com aquela voz característica de mulher do campo a cantar numa igreja. fiquei a olhá-la enquanto acabava a tarefa. "que foi, nunca viste?" perguntou. apeteceu-me responder que sim, uma e outra vez. vira tantas vezes aqueles mesmos gestos repetidos em tantos outros dias de aniversário e não aprendera nada com isso. fechei a porta e prossegui o caminho.

os corredores são tão intimidantes como qualquer outro espaço limitado em que parece não existirem horizontes laterais: só vemos uma extensão à nossa frente e temos a certeza de ter deixado uma extensão de dimensão variável atrás de nós mas, de um e outro lado, estamos limitados por paredes. Apetece-me colocar cada uma das minhas mãos em cada uma dessas paredes laterais e empurrá-las, obrigá-las à derrocada.

num outro quarto que abri com a mesma impulsividade, entro e vejo que é o quarto de alguém que acabou de falecer, o avô, ou mesmo o bisavô. quem quer que fosse deixou uma parte de si a desintegrar-se naquela atmosfera. sente-se que há uma presença que se vai desvanecendo lenta mas irremediavelmente. onde ficam os mortos depois de morrerem? no nosso coração?

há espelhos colocados naqueles corredores com intervalos calculados com todo o rigor. quando passo por eles, devolvem-me as mais variadas imagens de mim: uma criança, um velho decrépito, um homem maduro que resuma segurança, um adolescente, um homem que conhece o desencanto e a esperança. passo pelos vários reflexos impassível, sei que não posso mostrar qualquer tipo de nervosismo ou a ansiedade provocada, por me encontrar no corredor, vai tomar conta de mim, avassaladora.

quando finalmente saio para a rua vejo, em frente à casa, um pequeno lago e debruçada sobre ele uma árvore, cujo reflexo o lago devolve com simples perfeição. a visão é bela demais, envolvente e calmante. capturo lago, árvore e reflexo numa fotografia. é importante conservar memórias.