sábado, 31 de julho de 2010

Handel - Apócrifos

não foi a sua voz que o prendeu.
primeiro ouviu-a e depois foi-lhe apresentado num serão em casa dum desses nobres de que já nem o nome recordava. la bombace, disseram.

vitória deu-lhe o braço e arrastou-o para o jardim. ele contou-lhe o principal da sua vida e ela sorria e trauteava uma canção napolitana...

ela brincou com os seus dedos e ele corou. beijou-a por impulso. talvez o primeiro e último impulso para um beijo na sua longa vida. gostara de a beijar e gostara do seu riso fresco de soprano. iria compor uma ária para ela, uma ópera...

nos seus encontros intermitentes ele amou-a como se fosse a sua última oportunidade e fixou cada detalhe do seu corpo para que as memórias fossem mais vivas, mais exactas.

houve paixão, mas não ouve amor e isso é triste.

muitos anos depois ainda ia buscar inspiração para as suas árias de amor em vittoria tarquini,

you cannot do nothing about it


there is a fragment of you in me
there is a fragment of me in you

deep, very deep in the heart
where the environment is moist
it makes everything grow
slowly, so slowly

you didn't notice
when the seeds were planted
with ease and unconsciousness

yet, they are there
growing as a whisper

and there is nothing you can do about it

terça-feira, 27 de julho de 2010

Portugal: os Números


o nosso país não é conhecido pela qualidade das suas estatísticas. quando toca à interpretação das que existem, tantas vezes surgem as dúvidas, às quais nem o INE fica imune.

este livro de Maria João Valente Rosa e Paulo Chitas procura analisar um conjunto de dados estatísticos disponibilizados através da Pordata e desenhar um perfil de indicadores sobre as tendências sociais em Portugal, no período entre 1960 e a actualidade.

para além de informativo e rigoroso, trata-se de um livro didático que explica com definições e explicações simples os conceitos utilizados em estatística, por exemplo: saldo migratório,índice sintético de fecundidade, saldo natural,etc.

percebemos o que se passou com a população portuguesa nos últimos 50 anos: porque passámos de 8,9 milhões para 10,6 milhões, porque é que a população parou de crescer de maneira significativa. percebemos como evoluiu a situação da mulher na sociedade, a relação entre casamento e divórcio, o número de filhos por casal. ficamos a saber algo mais sobre saúde, justiça, trabalho, rendimentos, etc.

é um livro que, tratando de números, não tem a aridez que se costuma colar a esta temática. aprende-se a conhecer mais alguma coisa do país ao ler este livro.

e não posso deixar de salientar que, tratando-se de um livro de grande qualidade, tem um preço que, diria, é simbólico: 5€.


Portugal: os Números
Autores - Maria João Valente Rosa e Paulo Chitas
Edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos
Coordenação Editorial - Relógio D' Água Editores

domingo, 25 de julho de 2010

e-mail I


não disseste nada. estava à espera das tuas notícias.
podias ter aparecido. seria uma surpresa e poderiamos apreciar a noite sentados na varanda e falando sobre tudo. excepto sobre nós!

porque não valeria a pena falar sobre nós. nós - não existe! não nesse sentido que ultrapassa a mera partilha de algumas horas, alguns dias, alguns gostos e alguns desapontamentos. quando falo de nós falo de uma unidade... essa unidade não existe.

sendo assim, podemos seguir em frente e encarar o resto da vida com a esperança de uma nova oportunidade em alguém que, de facto, não será nenhum de nós.

mas...

soletra-me o teu nome ao ouvido
em voz baixa, letra a letra
para que o fixe para sempre e
quando o ouvir novamente
reconheça que o tempo já passou.

terça-feira, 20 de julho de 2010

deserto verde


deserto
deserto verde
esperança
contradição nos termos
as ruínas de tempos passados, vivos,
de viagens pelo deserto,
de mim,
dos outros,

flor do deserto,
flor solitária,
vives da pequena humidade da noite
combates a aridez dos dias
sobrevives,
mas, de facto vives,
num deserto verde,
permanente esperança,
permanente contradição.

domingo, 18 de julho de 2010

Egoista



o meu olhar penetra o teu e é assim que te leio a alma.
mas preciso lamber-te, tocar-te e cheirar a tua pele para conhecer o teu corpo,

e é do teu sabor que me alimento
e é o teu calor que me deixa vivo.

não falo de amor
não falo de paixão

falo de precisar de ti para me conhecer, para ser feliz,
para ter prazer

egoista, egoista, egoista

um rapaz à janela


na costa da escócia virada para a irlanda existem várias ilhas, as hébridas.entre elas, mull, iona e staffa.

partimos da cidade de oban - famosa pelo excelente whiskey - pela manhã e atravessamos de ferry para mull e num outro para iona. o mar está calmo e embala o barco. as gaivotas acompanham o nosso percurso, em voo ou descansando no convés.

iona é uma ilha muito pequena. lembro-me de atravessar duas ruas e um caminho até à abadia. as casas são cinzentas e o ambiente é um pouco agreste, mesmo no pino de agosto.

de súbito olho para uma casa e vejo um rapaz à janela. terá uns seis anos. está concentrado a jogar.

penso nas oportunidades que este rapaz terá, ali em Iona, uma ilha minuscula. sinto-me sufocar, tomado pelo pensamento de que poderia ser eu o rapaz à janela, criado naquela ilha de uma beleza agreste e sem as confortáveis ofertas da grande cidade.

fiquei especado a olhar o rapaz. tirei-lhe uma fotografia. ele deve ter pressentido algo, porque levantou os olhos do jogo e o seu olhar encaixou no meu. sorriu.

foi como se tivesse aberto as portas do seu mundo para me mostrar. pelo sorriso percebi que era feliz na ilha e que crescer ali não queria dizer nada. poderia ser tudo o que quisesse, ali ou noutro lugar. e o mar não seria obstáculo, antes a corrente que o acompanharia sempre.

senti-me cheio de preconceitos e mesquinho - tirar conclusões sem conhecer.

ás vezes basta um sorriso para se compreender tudo.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

alucinação


lisboa, cidade vazia.

dois gatos pretos, entram lado a lado no teatro nacional de são carlos e com o seu andar felino, dirigem-se ao palco. o cenário é de um branco imaculado, pautado por duas estruturas transparentes: dois cubos no centro do palco. os gatos sobem para cima dos cubos e posicionam-se frente a frente, sentados sobre as patas traseiras. começam a cantar. quando terminam a função agradecem os aplausos esfuziantes de uma plateia vazia.

um louco, vestido com grande formalidade toca dulcimer na esquina da rua da misericórdia com o largo de camões. à sua frente, pousado no passeio, está um chapéu alto cheio de moedas. o louco canta e a sua ária é um pensamento sobre a alma. as pessoas que passam por ele indiferentes, subitamente encantadas pelo som, fascinadas, param e dirigem-se ao chapéu alto de onde tiram uma ou duas moedas. Em pouco tempo o chapéu fica vazio. Depois as ruas ficam vazias. O louco termina a sua ária, arruma o dulcimer no estojo, coloca o chapéu alto na cabeça, endireita o laço e começa a descer a rua do alecrim em direcção ao rio.

em alfama, a alma percorre as ruas sem destino, lamentando a sua cegueira. veste de branco: é uma noiva... veste, tecido com as teias de mil aranhas que gentilmente carregam a cauda.

nas portas do sol uma pequena orquestra executa uma melodia intimista. os músicos envergam roupas ligeiras e confortáveis. a audiência está sentada em cadeiras especialmente colocadas ali para o efeito. estão a gostar da melodia e agitam os pescoços para a esquerda e para a direita ao sabor da música. no fim da actuação, os músicos agradecem e as pombas dão ao bico aplaudindo intensamente após o que levantam voo numa debandada geral.

no convento do carmo uma gárgula chora, lamentando os anos que tem estado aprisionada. chora pequenos seixos que caem no passeio e vão rolando rua abaixo...

de súbito todos os sinos de lisboa começam a tocar ao mesmo tempo. A música parece fazer eco nas ruas da cidade. há uma certa ansiedade trágica. os cães escondem-se, nos ramos das árvores os pássaros calam-se e as estátuas da cidade, animadas, movem-se na direcção do som.

a alma dorme no rossio. um pianista de fraque toca uma melodia que a faz sonhar. subitamente este deixa o piano e penetra o sonho da alma... toma posse do sonho, agita a alma, prende-a com as notas da melodia. a alma sorri. o pianista desaparece no sonho e o piano fica esquecido na praça.

junto à estação dos restauradores um jovem faz bolas de sabão. as bolas ao subirem, no seu percurso, envolvem e levantam para o ar tudo aquilo em que tocam. uma levantou um banco da rua, outra um automóvel que estava estacionado na berma, outra levantou um homem. tudo vai subindo em direcção ao céu, dentro das bolas de sabão.

no cais do sodré um grupo de donzelas com vestidos primaveris e coroas de flores na cabeça executam uma coreografia em honra do “senhor”. a rainha das flores canta uma melodia harmoniosa. o “senhor” torce o nariz, o seu olhar perde-se no horizonte do rio pontuado por embarcações que vogam ao deus dará. o “senhor” faz um gesto e as donzelas evaporam-se, uma a uma, no tempo que passa. a última a desaparecer é a rainha das flores que ainda tem tempo para terminar a canção.

na sé, o orgão toca. não existe ninguém para ouvir o concerto. junto ao orgão nota-se uma distorção temporal com a vaga forma de pessoa, mas é tão insubstancial que a realidade passa apenas pelo teclado que transpira com frenesim e por uma ligeira depressão no banco do organista. o som choca com as paredes nuas da sé, com os túmulos abandonados nas capelas da rotunda, antes de convergir num ponto central da catedral e, formando jactos iluminados, sair pela porta e espalhar-se sobre a cidade, num fogo de artifício diurno.

uma perspectiva aérea. a câmara foca a av. da liberdade até ao marquês de pombal e depois o parque eduardo VII, no topo do qual a alma canta com o optimismo da inconsciência. braços abertos, gestos largos, cheios de movimento e fluidez, marcada pelas grandes opas que cobrem os seus braços. a ária irradia luz e calor... a oriente surgem as primeiras nuvens...

sábado, 3 de julho de 2010

escolhas


na teoria das vidas paralelas, podiamos agora estar em viagem e seriamos donos do mundo. seriam várias viagens: uma por cada grande escolha que fizémos na vida.

teriamos tido oportunidade de viver outras vidas, teriamos conhecido outras pessoas, teriamos adquirido outros conhecimentos e teriamos amado de outra maneira.

como seria ter vários eus a passear por aí, na mais perfeita independência dos nossos constrangimentos, dos nossos compromissos, das nossas culpas.

as vidas paralelas existem em nós. por cada pensamento "como seria", estamos a viver nessa outra dimensão irmã do sonho.

é uma forma de ultrapassar a frustração, uma forma de lamber as feridas adquiridas ao longo do caminho e uma forma de renovar a esperança.

a esperança em que novas escolhas sejam as mais acertadas.