sexta-feira, 25 de junho de 2010

vou dizer-te porque somos amantes




vou dizer-te porque somos amantes

somos amantes porque vivemos o desejo sempre que nos vemos
um desejo que, além da expressão corporal,
tem por base os encontros de olhares
a coincidência dos sorrisos
o toque
e a rigorosa gestão da respiração
pelo meio de silêncios e de palavras.

somos amantes porque se assim não fosse
eu não gastava o teu corpo na minha imaginação
fazendo as coisas que se fazem aos corpos em tais circunstâncias:
um beijo, outro beijo, uma caríca, outro beijo.

somos amantes porque no meu coração
estão todos os beijos que não te dei
todos os gestos que não fiz e que ainda
percorrem o éter livremente

se não fossemos amantes
estariamos obrigados a fazer tudo diferente,

a dizer amo-te todos os dias da semana
independemente do tempo e da vontade.
usariamos amo-te, da mesma forma que gastariamos os corpos em uniões nem sempre sentidas

acabaria por ser triste não sermos amantes

mas porque somos amantes
podemos sempre renascer um no outro,
refazer a nossa história, decidir para onde ir, qual o caminho a tomar.

porque somos amantes podemos amar sem o constrangimento da obrigação
sem esperar retribuição
acordar num outro amanhã
apostar na certeza de que estarás aí, eu aqui
para nos encontrarmos sempre.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

O Monte dos Vendavais (Wuthering Heights) por Emily Brontë


da primeira leitura conservo a atmosfera, a intempérie, a paisagem agreste que faz as personagens agrestes; um sabor a antigo, a emoções intensas e impiedosas.

tinha uns 13 anos quando li O Monte dos Vendavais de Emily Bronte pela primeira vez. Gostei muito.

o amor de Cathy e Heatchcliff constitui uma estranha forma de pensar, sentir e viver esse sentimento. trata-se de um Amor que não procura a felicidade, antes a vingança e a satisfação dos instintos mais mesquinhos. é um Amor predestinado, irrecusável e que se perpetua e realiza na destruição dos seus sujeitos. parece a antítese do Amor. mas o Amor de Cathy e Heathcliff é imortal, pois mesmo depois da morte existe uma promessa de amanhã. por isso, talvez, O Monte dos Vendavais continue hoje a ter leitores.

relendo-o, recuperei algumas das sensações da primeira leitura, mas não a surpresa. recuperei o fantasma de Cathy, enunciado à janela, pedindo para entrar, recuperei a crueldade de Heatchcliff, a força da obcessão que o consome. revi Ellen Dean sentada à lareira, cozendo e narrando a história, com o distanciamento de quem tem consciência de que a sua culpa não é de pouca importância. e Mr. Lockwood ajudando-nos a nós, os visitantes, que por um motivo ou por outro chegamos ao Monte dos Vendavais e temos que privar com personagens tão humanas e tão rudes.

sobretudo, permanecerão duas imagens: Cathy à janela pedindo para entrar; Cathy e Heathcliff reunidos depois da morte, percorrendo o monte em noites de vendaval.


O Monte dos Vendavais (Wuthering Heights)
Emily Brontë
edição: Relógio d'Água
tradução: Maria Franco e Cabral do Nascimento
prefácio de Hélia Correia

sábado, 19 de junho de 2010

Uivemos, disse o cão. - Livro das Vozes (em Ensaio sobre a Lucidez de José Saramago)

"Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes,..."

assim começa, com uma das mais belas imagens da literatura portuguesa, o romance A Jangada de Pedra, de José Saramago.

não era muito simpático. tantas vezes transparecia uma imagem de altivez e arrogância, mas quem o conheceu contradiz todas essas opiniões, construídas a partir de uma imagem pública.

mas nada disso interessa agora. o Homem morreu e as suas personagens estão finalmente libertas da única voz que as podia verdadeiramente explicar. são livres para crescer ainda mais e impregnar o nosso imaginário.

Joana Carda não será uma dessas personagens e porém, tomou conta da minha imaginação que a transformou numa mulher com poderes, uma feiticeira, matriarca, representante da mulher mais despida de futilidade e mais repleta de natureza. com um risco no chão feito com um pau de negrito, Joana Carda, se não é responsável, é a causa primeira de tudo o que vem depois.

que dizer de Baltasar e de Blimunda - como se descobre, como se revela o nome Blimunda, como se junta duas metades pelo nome, Baltazar, Blimunda e se inventam novos tristão e isolda, romeu e julieta... que dizer do Amor em Saramago? um sentimento que, nos seus livros, é um sentimento aparentemente frugal, despido de sensualidade, de emoção, de intensidade? Não sei interpretar, terei de procurar mais.

mais que de personagens, um escritor de ideias - ideias que reflectem valores e princípios, quer directamente, quer através de imagens e de alegorias, pela positiva e pela negativa.

na sua morte, as homenagens, o ritual da morte dos heróis e dos famosos.
todos queremos um pouco do banquete, uma relíquia...

em paz, com a sua ausência de deus, um exemplo de espiritualidade, de procura...
o seu espírito regressou ao universo, atingiu a plenitude, a permanência univeral.
ficam-nos os livros e a memória. as pessoas existem enquanto permanece a sua memória em nós, a sua voz.

foi mais uma voz que se calou.

para uns um familiar querido, para outros um parente que não gostamos de receber, para outros ainda, alguém que sendo da família, preferimos ignorar porque estamos de relações cortadas. foi uma voz que, quando falava, tinhamos obrigatoriamente que ouvir com atenção. uma voz como já há poucas, neste triste país, onde as vozes que interessam vão sendo substituidas por outras que não merecem a vibração que provocam no ar.

hoje, a clara ferreira alves publicou um texto no expresso que diz muito,... se é que não diz mesmo tudo.

e a propósito de amor - Pilar!

proposta de audição: requiem de maurice duruflé

sábado, 12 de junho de 2010

das estátuas


as estátuas são seres aprisionados, cuja sentença é permanecer imóveis até a pedra ceder e já não ser possível enganar o tempo e a eternidade.

a eternidade não é para as estátuas. a eternidade é um conceito vazio que sobrevive da consciência, cuja principal referência é o homem e cujo principal aliado é o tempo.

as estátuas são personalidades capturadas no tempo, obrigadas a um pensamento longo, paciente e profundo. não podem renegar o ser e a emoção, não podem recusar, não podem dizer não.

quando as olhamos retribuem o olhar, ou fazem que nos olham de volta com olhares, ora curiosos, ora sofridos, ora alegres, ora desesperados. mas as estátuas só conseguem ver uma realidade.

a sentença das estátuas é dura e inapelável. o seu único alívio reside nos momentos em que a porosidade da pedra se rende aos elementos e então, adquire alguma maleabilidade à custa dos pedaços que vai perdendo - uma doença da pedra, uma lepra anunciada.

mas é o seu carácter que realmente importa: a gárgula que olha sonhadora(?), contemplativa, o céu de paris, do alto de notre dame; a cabeça de olhar vazio de antínoo; a dor e o abandono da pietá rondanini; toda a biografia de marco aurélio na sua estátua equestre; o corpo ao vento da vitória de samotrácia; os colossos da ilha da páscoa; a interrogação no olhar do d. sebastião de lagos, de joão cutileiro.

as estátuas escondem segredos... as estátuas não escondem segredo nenhum.

os segredos estão no nosso olhar, no que queremos ver nas estátuas.

é a tridimensionalidade das estátuas que as faz mais humanas - é a nossa dimensão que, tantas vezes, nos faz duros como estátuas.

terça-feira, 8 de junho de 2010

castle howard






o silêncio é cortado pelo som dos passos na gravilha do caminho. o silêncio abre uma ferida seca, envolve o ruído que o perturba, fecha-se sobre ele, cicatriza e regressa na sua plenitude.

o ar é estruturado, possui uma dimensão pontilhista inescapável. sente-se respirar.

castle howard ergue-se com imperiosa certeza: da sua imponência, dos seus pergaminhos.

o mês de agosto é benevolente no yorkshire. o dia está nublado, a temperatura é tépida - apetece passear pelo parque!

o templo dos quatro ventos fica ali, depois daquele caminho. O mausoléu mais à frente, depois de se passar aquela ponte.

Quem quer entrar no palácio?

lá dentro, a guia... uma senhora com a dignidade facilmente associada a miss marple, diz-nos, a certa altura, num momento adequado, "foi mrs. howard que colheu as flores, hoje. - foi ela que fez os arranjos nas jarras dos vários salões. e que magnífico trabalho fez ela!"

cá fora no parque, um magnífico relvado estende-se até ao lago. vamos caminhar por ali.

tira uma fotografia - já estou com saudades! Mas ainda cá estás. É tão fácil ter saudades deste lugar,... mesmo estando aqui, ainda...

um pavão olha por uma janela - é compreensível! que tipo de ser prefere estar lá dentro quando é cá fora que o lugar existe verdadeiramente.

outrora uma orquestra tocava naquele lugar - junto à fonte de atlas! Sim, estou a ouvi-los tocar... os violinos, os violoncelos, os clarinetes, trompas para a caça, talvez um cravo...

vamos voltar?

sim, não. este é o tipo de lugar a que não se volta. simplesmente nunca saímos daqui.


(castle howard fica a cerca de 15 milhas a norte de york, em inglaterra. é a residência da famíla howard desde o séc. XVIII, quando foi desenhada por sir john vanbrugh para charles howard, o 3º conde de carlisle. o hon. simon howard a sua mulher e dois filhos habitam o palácio que foi cenário da série televisiva brideshead revisited. Mais informações em http://www.castlehoward.co.uk/

sexta-feira, 4 de junho de 2010

como eu te falo de sonhos


voltei a tocar-te,

algumas das minhas células vivas tocaram as tuas
e voltou a vontade

renasceu o desejo de estar contigo,
partilhar a emoção
e o mesmo momento de eternidade

não lembro a cor dos teus olhos,
não conheço o teu sorriso,
ignoro o timbre da tua voz.

uma paixão mal resolvida são todos esses pormenores
e mais
é o calar do silêncio,
a vibração do ar entre nós,
um gesto interrompido...

fala-me de ti como eu te falo de sonhos,
paixão!

deixa-me incendiar outra vez.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

500 Escolas

o governo anunciou ontem que vai encerrar mais 500 escolas.
a justificação é que turmas com menos de 20 alunos obtêm pior aproveitamento escolar.

na minha opinião, por trás da desculpa esconde-se uma questão exclusivamente económica: são menos professores, são menos instalações para manter, etc.

o resultado certo desta medida é mais um contributo directo para a desertificação do país. estas escolas não vão fechar em lisboa, porto ou na amadora, vão fechar em trás os montes, nas beiras, no alto douro, no alentejo e no algarve. no interior.

numa perspectiva optimista, podemos sempre esperar um futuro, a breve trecho, em que para além das praias do algarve e de pouco mais, podemos oferecer ao turista moderno, um pacote telúrico, com passeios guiados por um portugal deserto e arruinado. ficarão as ruínas, pois a marca do homem é sempre mais demorada a apagar.

mas estas questões não interessam a ninguém... talvez apenas interessem aos directamente interessados: às crianças que em maior ou menor grau são desenraizadas do seu meio e aos pais das crianças que vão ter de se acomodar. Mas estas pessoas não contam para nada...

vi a ministra da educação a justificar a medida na televisão e fiquem constrangido. a ministra, a quem não nego interesse e preocupação pelas crianças e pelos jovens, parecia constrangida, justificando o que parece não ter justificação. pareceu-me que a ministra não acreditava nas explicações que verbalizava. foi a minha leitura. devo estar a ler demais no rosto dos outros.

é um país triste, onde os pensamentos são tristes, as acções tristes e em que a esperança está totalmente desesperada!

Proposta de audição: ária "verdi prati, selve amene" da ópera de Handel Alcina