sexta-feira, 16 de julho de 2010

alucinação


lisboa, cidade vazia.

dois gatos pretos, entram lado a lado no teatro nacional de são carlos e com o seu andar felino, dirigem-se ao palco. o cenário é de um branco imaculado, pautado por duas estruturas transparentes: dois cubos no centro do palco. os gatos sobem para cima dos cubos e posicionam-se frente a frente, sentados sobre as patas traseiras. começam a cantar. quando terminam a função agradecem os aplausos esfuziantes de uma plateia vazia.

um louco, vestido com grande formalidade toca dulcimer na esquina da rua da misericórdia com o largo de camões. à sua frente, pousado no passeio, está um chapéu alto cheio de moedas. o louco canta e a sua ária é um pensamento sobre a alma. as pessoas que passam por ele indiferentes, subitamente encantadas pelo som, fascinadas, param e dirigem-se ao chapéu alto de onde tiram uma ou duas moedas. Em pouco tempo o chapéu fica vazio. Depois as ruas ficam vazias. O louco termina a sua ária, arruma o dulcimer no estojo, coloca o chapéu alto na cabeça, endireita o laço e começa a descer a rua do alecrim em direcção ao rio.

em alfama, a alma percorre as ruas sem destino, lamentando a sua cegueira. veste de branco: é uma noiva... veste, tecido com as teias de mil aranhas que gentilmente carregam a cauda.

nas portas do sol uma pequena orquestra executa uma melodia intimista. os músicos envergam roupas ligeiras e confortáveis. a audiência está sentada em cadeiras especialmente colocadas ali para o efeito. estão a gostar da melodia e agitam os pescoços para a esquerda e para a direita ao sabor da música. no fim da actuação, os músicos agradecem e as pombas dão ao bico aplaudindo intensamente após o que levantam voo numa debandada geral.

no convento do carmo uma gárgula chora, lamentando os anos que tem estado aprisionada. chora pequenos seixos que caem no passeio e vão rolando rua abaixo...

de súbito todos os sinos de lisboa começam a tocar ao mesmo tempo. A música parece fazer eco nas ruas da cidade. há uma certa ansiedade trágica. os cães escondem-se, nos ramos das árvores os pássaros calam-se e as estátuas da cidade, animadas, movem-se na direcção do som.

a alma dorme no rossio. um pianista de fraque toca uma melodia que a faz sonhar. subitamente este deixa o piano e penetra o sonho da alma... toma posse do sonho, agita a alma, prende-a com as notas da melodia. a alma sorri. o pianista desaparece no sonho e o piano fica esquecido na praça.

junto à estação dos restauradores um jovem faz bolas de sabão. as bolas ao subirem, no seu percurso, envolvem e levantam para o ar tudo aquilo em que tocam. uma levantou um banco da rua, outra um automóvel que estava estacionado na berma, outra levantou um homem. tudo vai subindo em direcção ao céu, dentro das bolas de sabão.

no cais do sodré um grupo de donzelas com vestidos primaveris e coroas de flores na cabeça executam uma coreografia em honra do “senhor”. a rainha das flores canta uma melodia harmoniosa. o “senhor” torce o nariz, o seu olhar perde-se no horizonte do rio pontuado por embarcações que vogam ao deus dará. o “senhor” faz um gesto e as donzelas evaporam-se, uma a uma, no tempo que passa. a última a desaparecer é a rainha das flores que ainda tem tempo para terminar a canção.

na sé, o orgão toca. não existe ninguém para ouvir o concerto. junto ao orgão nota-se uma distorção temporal com a vaga forma de pessoa, mas é tão insubstancial que a realidade passa apenas pelo teclado que transpira com frenesim e por uma ligeira depressão no banco do organista. o som choca com as paredes nuas da sé, com os túmulos abandonados nas capelas da rotunda, antes de convergir num ponto central da catedral e, formando jactos iluminados, sair pela porta e espalhar-se sobre a cidade, num fogo de artifício diurno.

uma perspectiva aérea. a câmara foca a av. da liberdade até ao marquês de pombal e depois o parque eduardo VII, no topo do qual a alma canta com o optimismo da inconsciência. braços abertos, gestos largos, cheios de movimento e fluidez, marcada pelas grandes opas que cobrem os seus braços. a ária irradia luz e calor... a oriente surgem as primeiras nuvens...

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